Pesquise no Blog "Diante do tabuleiro, a mentira e a hipocrisia não sobrevivem por muito tempo. A combinação criadora desmascara a presunção da mentira, os impiedosos fatos que culminam no mate, contradizem o hipócrita." - Emanuel Lasker - Xadrez é vida, é sorte, é azar. É jogar, se esconder, se divertir, rir, mentir, suar, matar, capturar. Com o xadrez aprendemos a ser felizes; com ele, podemos aprender a viver; ganhamos, perdemos, mas JOGAMOS; para um grande enxadrista não basta apenas JOGAR, mas é necessário GANHAR! Como Kasparov sempre dizia: o mestre só se torna um mestre a partir de mil derrotas e meia vitória, pois assim ele aprende a ter dignidade e ser capaz de ver os lances, prever os lances. Um mestre só se torna um mestre quando obtêm mil derrotas pensadas, mas ele se torna um burro quando não quer pensar e para de jogar.

Xadrez = Arte

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"A vida é uma eterna partida de xadrez. Quando a gente não tem a iniciativa A oportunidade passa e você perde a vez."

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sábado, 30 de agosto de 2008

Cortina de Fumaça parte III

Stein, Adriano x Vilas Boas, Crisolon – I CEAX 2006 – B14

1. e4 ...

Ao iniciar a análise desta partida, subitamente me ocorreu um conhecido poema de [Carlos] Drummond [de Andrade, escritor e poeta]:

“No meio do caminho tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho / Tinha uma pedra / No meio do caminho tinha uma pedra / Nunca me esquecerei desse acontecimento / Na vida de minhas retinas tão fatigadas / Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho / No meio do caminho tinha uma pedra”.

Com a simplicidade própria de quem sabe por que caminhos e pedras trilhar, Drummond universaliza e fixa em nosso imaginário uma idéia de impossibilidade que se encontra impregnada em cada um de nós de forma pessoal e intraduzível. Ou, por outra, a pedra que impede o caminhar pode variar de tamanho e forma para cada um, mas todos sabemos reconhecê-la quando a encontramos a nossa frente.

E, assim como quem se depara com o impossível, me deparo com o movimento inicial de uma partida de xadrez. O primeiro passo sobre um monólito intransponível de combinações lógicas, acima e adentro do qual só nos resta caminhar sem grandes perspectivas de logro, senão pelo malogro prévio de nossos adversários.

É sob esta mesma perspectiva que passo a caminhar com Crisolon. O crepúsculo se anuncia no horizonte e a escuridão me domina. Sou impossível para a verdade do xadrez como a luz do Sol para a noite. E, transportando-me para o universo poético de Drummond, me pergunto, como quem busca em Crisolon a resposta: “O quê vê Crisolon? O quê Crisolon vê? O quê vê Crisolon?”.

Ele então responde...

1. ... c6
2. d4 ...

Adriano Stein é o jogador que mais evoluiu seu xadrez dentre os freqüentadores do núcleo Taça de Ouro, nos últimos tempos. Recentemente, jogou partida soberba contra Francisco Costa, válida pelo I CIMAX de Vila Velha 2006, que lhe assegurou a 3ª colocação no torneio. Quando jogou esta partida contra Crisolon, acabara de completar seu derradeiro bloco FIDE, derrotando, de pretas, ninguém menos que o campeão municipal de Vitória, Osmar Schmidt. E quando jogou este peão em d4, deixou claro ao seu adversário que partiria com tudo logo no início.

2. ... d5
3. exd5 cxd5
4. c4 e6
5. Cf3 Cf6
6. Cc3 Be7
7. Bd3 dxc4

Este peão cumpriu sua função de levar o bispo a fazer uma escala em d3. Agora é hora de trocá-lo, isolando o peão de d4.

8. Bxc4 O-O
9. O-O Cbd7
10. Te1 Bb4
11. a3 Ba5
12. b4 Bb6
13. Bg5 a6
14. Ce5 Bc7
15. Cxd7 Bxd7
16. Ce4 b5
17. Cxf6+! ...

Crisolon deixou passar a ameaça que pairava sobre si. Agora, além da quebra do roque, terá de ceder vantagem material ao adversário, sob pena da perda quase imediata da partida.

17. ... gxf6
18. Bh6 f5
19. Bb3? ...


Parecia melhor 19. Bxf8 e, qualquer que fosse a seqüência (19. ... Dxf8 , 19. ... Rxf8 ou 19. ... bxc4), as brancas consolidariam sua vantagem. Entretanto, Adriano tinha outro plano em mente.

19. ... Te8
20. Da5 Df6
21. Bg5 Dg6
22. Dxg6 hxg6

Após a troca das damas, as forças se equivalem sobre o tabuleiro. Neste momento, a pergunta-chave desta crônica novamente me visitou: “O quê vê Crisolon? O quê Crisolon vê? O quê vê Crisolon?”.

Crisoloneando-me, em busca da resposta, fechei os olhos e tateei as peças que havia montado num tabuleiro ao lado do computador. Após longo tempo de reflexão, consegui vislumbrar todas as continuações possíveis para o lance seguinte.

Mas ao lance seguinte se seguia outro, e outro, e outro (a enorme pedra no meio do caminho). Inconformado com o insucesso de minha busca, subitamente abri os olhos e vasculhei uma vez mais o tabuleiro.

Enfim, encontrei a resposta que eu procurava. (E aqui não há como estendê-la ao leitor, pois a cada um cabe senão sua própria resposta do mergulho em si mesmo).

Às vezes o sentido de uma pergunta é se repetir indefinidamente dentro de nós. De onde eu vim? Quanto tempo me resta? Para onde vou depois que tudo se acabar?

Desde que a evolução premiou a espécie humana com o dom da consciência, perguntas e respostas acerca do Existir têm sido formuladas, modificadas e, enfim, diluídas no tempo e no vento. O próprio despreocupar-se com estas questões é uma forma de se lidar com elas, pois não nos imuniza da condição existencial.

O sentido deste processo, porém, não é o estabelecimento de um ponto de chegada, nem o eterno lamentarmo-nos pela saudade de um ponto de partida do qual nos desviamos inadvertidamente. Caminhamos por um círculo virtuoso de descobertas e, inevitavelmente, chegamos ao mesmo ponto de onde partimos, modificados (enriquecidos) pelo que encontramos ao longo do caminho.

Assim, quando encontrei, ao abrir os olhos, as mesmas dúvidas pairando sobre o tabuleiro, percebi que havia percorrido o perímetro do círculo e atravessado a cortina de fumaça que encobria a verdade que eu procurava.

Deixei, enfim, que a pergunta se fizesse livre de qualquer resposta: “O quê vê Crisolon? O quê Crisolon vê? O quê vê Crisolon?”.

23. Bf6 Bc6
24. Te3 Bd8
25. Be5 f6
26. Bd6 Bd7
27. Tae1 Rf7
28. Bc5 ...


Apesar do equilíbrio, a posição das brancas é mais confortável. Possuem mais espaço e apontam todas as suas armas para e6, debilidade das pretas que só será corrigida mediante a concessão de um peão passado em d5.

28. ... Tc8
29. d5 e5
30. d6+ Rg7
31. g3 g5
32. f4 g4
33. fxe5 fxe5
34. Txe5 Txe5
35. Txe5 Rf6
36. Te1 a5
37. Rf2 axb4
38. axb4 Ta8
39. Bd4+ Rg6
40. Be6 Bxe6
41. Txe6 Rf7
42. Te2 Ta3
43. Rg2 Td3
44. Bc5 Bg5
45. Rf2 ...

Os lances 43. Rg2 e 45. Rf2 são sintomáticos: Adriano parece não encontrar um plano para seguir jogando; mesmo porque o peão de vantagem conquistado parece insuficiente para ser convertido em vitória. Além disto, talvez estivesse apurado no tempo, ou simplesmente extenuado pelo ritmo intenso do torneio. Meras especulações. Mas convém lembrar que já estávamos na quarta rodada, e aquela já era a terceira partida em um mesmo dia.

45. ... Bd8
46. Re1 Bg5

No caso de Crisolon, o movimento pendular do bispo reflete uma postura de espera: mesmo se o peão da esperança transpuser o deserto de d7, seu oásis em d8 está sendo duplamente vigiado pelos beduínos torre e bispo.

Não obstante a conduta coerente dos jogadores com suas respectivas perspectivas dentro da partida, a indeterminação que daí advém sugere a lembrança de um episódio atípico, passado no mesmo torneio, durante a sexta e decisiva rodada.

Estávamos conversando do lado de fora do salão de jogos eu, o Arlindo [Conceição] e o Pablyto [Robert, Presidente da FESX e campeão do II CEAX de 2006], quando passou por nós o Crisolon. Como tivesse uma fisionomia preocupada, não quisemos estender-lhe a conversa para não desconcentrá-lo de sua partida contra Esevandro Campos, que estava duríssima.

Pouco tempo se passou até que novamente ele voltasse e parasse, bem ao nosso lado. Rosto contrito, ainda mais preocupado que da primeira vez. Lembro-me de ter comentado com o Arlindo qualquer coisa sobre o fato.

Voltamos a conversar e, de relance, percebi quando Crisolon, resoluto, retomou sua caminhada, agora em direção a uma rampa próxima de onde estávamos. Já a poucos centímetros de uma colisão, num reflexo presidencial, o Pablyto pediu que ele parasse e, em seguida, lhe perguntou: “Crisolon, você está procurando o salão de jogos?”.

Então, eis que percebo o semblante de Crisolon se iluminar como o de um homem que, num instante, se descobre novamente menino: ao problema de encontrar o movimento certo sobre o tabuleiro, precedia o de encontrar o movimento certo até o tabuleiro, e este acabara de se resolver a seu favor!

Na partida em análise sucederá algo muito semelhante...

47. Ta2 Re6
48. Ta5 Td2
49. Txb5 Txh2
50. Bf2 Rxd6
51. Txf5 Th5
52. b5?? ...

Este lance decreta o fim da partida, em favor das pretas.

52. ... Bd2+!

Escondida na batina do bispo, a jurumba canta: “O quê vê Crisolon? O quê Crisolon vê? O quê vê Crisolon?”.

A propósito, acerca deste lance tenho mais um comentário a fazer: vezes há em que um palavrão expressa melhor o que queremos dizer do que substituí-lo por um eufemismo. E mais: vezes há em que somente um palavrão é capaz de expressar o que sentimos!

É com esta certeza em mente e pedindo licença ao leitor, que afirmo: ao jogar o lance do texto, Crisolon deve ter pensado consigo mesmo (e, se não o fez, cá estou para reparar este lapso): “Ceguinho é o c******!” (se aqui aparecer um comentário entre parêntesis, saiba o leitor que esta é uma versão alternativa da crônica, na qual o uso do palavrão foi desaconselhado).

53. Rxd2 Txf5
54. Be3 Txb5

0-1




Volto ao primeiro lance, quando Crisolon tinha diante de si tão somente uma enorme pedra e deu o primeiro passo. O que, para muitos, poderia parecer apenas uma tortuosa travessia no escuro, para ele era a busca reta e cristalina da verdade.

E a verdade, este caminho sem máculas do espírito humano, estava 54 movimentos à frente, a esperar por ele.

Parte I; Parte II